A moral por um fio dental - Px Silveira.
A moral por um fio dental.
Px Silveira
Declino, de entrada, que esses escritos abaixo devem ser ouvidos como uma canção e são frutos de conversas amigáveis com Jorge Mautner e Batista Custódio. Cada um por sua vez e turno, são dois seres iluminados e dos mais estranhamente lindos que existem sobre essa terra. E ainda que jamais tenham se comunicado ou encontrado fisicamente, percorrem caminhos por vezes iguais e que até chegam a se cruzar. É Jorge, por exemplo, quem interpreta o tributo a Fábio Nasser, emprestando a magia de sua voz dominante e aveludada à canção A vida que Deus te deu, cujo lançamento se dará em tempo breve.Esses dois personagens singelos, porém implacáveis, impiedosos e surpreendentes combatentes do bem, descortinam suas vidas no palco Brasil, onde não faltam emoções. Eis que vivemos em um País de presidente operário, ministro tropicalista e dado a se recriar, por causa mesmo dessas pessoas entre nós. O problema, diga-se de passagem, é que tem a outra banda. E os da parte viva são corriqueiramente temperados e às vezes sufocados pelos da parte podre. Mas deixemos isso de lado, ao menos por enquanto. E vamos direto a um assunto emblemático que deve estar, também, ocupando seus momentos de reflexão. É que no eterno e diuturno conflito entre o novo e o velho, cujo parênteses é o presente que vivemos, a mídia finalmente nos reflete os sinais de que alguns movimentos de minoria estão conseguindo tornar-se símbolo exemplar do avanço social entre nós. Enquanto isso, na outra banda, igrejas e derivados se revezam e resistem lutando para ungir qual de seus movimentos é o mais refratário às mudanças e às chegadas de parâmetros mais diversificados para interpretar o mundo em que vivemos.Entre estes dois pólos, vejo que Batista e Mautner, apenas por questão de princípios, certamente fariam parte da Parada Gay e não da Parada Evangélica, para citar dois exemplos que aconteceram semana passada em São Paulo. Nestes dois eventos, temos representadas duas pontas de iceberg da sociedade. A Parada Evangélica é a voz conservadora, tentando ecoar não o perdão, mas a punição divina, e assim ser exatamente o contraponto à dita “ameaça” modernizadora e libertária representada pelo movimento GLS, GLBT e outras bandeiras de orgulho (a gente nunca sabe quantas ao certo), que se reúnem na Parada Gay. E entre esses dois eventos balança o coração do povo, cujos atos vêm como avalanche. E da urna do asfalto, que recebem passos ao invés de cédulas virtuais, de forma decidida e avassaladora, eis que o povo está tentando nos dizer que alguma coisa está errada, embora não se saiba exatamente o quê. A nosso socorro, podemos evocar os números, em sua linguagem direta e sem filigranas conceituais.A também recente missa do papa Bento, na mesma capital, teve 150 mil espectadores. A Parada Evangélica, 1 milhão de pessoas. E a Parada Gay, 3 milhões de cidadãos expressando o gosto pela liberdade, diversidade e alegria de se ser o que se é. Diante destes números, constatamos mais uma vez que o povo brasileiro é fruto de uma amálgama de que já falava José Bonifácio e que lhe impõem a modernidade como modelo. Se por um lado – e com razão – os pais manifestam preocupação pelo que é de seus filhos, o medo que eles caiam nas mãos de traficantes e de molestadores sexuais, entre outros medos menores, ao mesmo tempo esses mesmos pais são totalmente a favor das liberdades atuais. Por isso não há como fugir do problema, que falsamente tem se proposto como dilema da civilização. Com o temor no altar, os pais vêem com admiração a semi-nudez dos carnavais, o andar provocante da moça sensual bem de manhã para ir lânguida comprar um simples pão na padaria mais próxima. Detém-se estes pais boquiabertos frente às gostosas vendedoras de cerveja que nos aparecem em todos os locais e em todos os horários, e não acham nada de mais a beleza estonteante de uma banhista com seu fio dental. E têm razão, os pais, que mesmo desfiando o terço da muleta que lhes oferece a religião reconhecem que a sedução é bela, e quem a pratica são todas criaturas acima do bem e do mal. Essa é uma das constatações que provam quão ondulante é a linha da moral, que pode aceitar como extremamente natural algo que a hipocrisia taxidermisa como um dos mais graves sinais do final dos tempos.Assim caminha a humanidade neste chão do Brasil. Enquanto os protagonistas dos poderes estabelecidos nos matam de vergonha de ser brasileiros, com sua moral desviante e com a nudez espiritual expostas nos escândalos que não param de se sucederem uns aos outros. Portanto, é falso o dilema da maior liberdade ou maior repressão. Todo este debate, com seus ares ameaçadores e temerosos, é alimentado justamente por aqueles que não querem debater, que assim puxam factóides para o primeiro plano, porque têm muito a esconder nos bastidores. É lá, finalmente, onde grassa a hipocrisia. É de lá dos bastidores humanos que provêm os discursos mais inflamados, pois ela, a hipocrisia, é que lhes serve de adubo. Já a moral, essa vem do povo. E somente o povo que a conduz, constrói e determina. Estamos falando da moral que é validada – e não da que é imposta e vencida com o tempo. Neste contexto, a pujança da Parada Gay é o sinal de que ela vai bem, a moral, apesar dos tiros nas asas. Ao contrário do que nos querem dizer e fazer acreditar, aqui no Brasil, país mais do que especial, a moral mantém-se incólume e salva por um fio, o fio dental.